ESPIONAGEM E INCONSTITUCIONALIDADE

 

Atualmente, tenho notado nos noticiários nacionais e internacionais que a maior dificuldade dos governos e respectivos serviços secretos é definir claramente quais devem ser os alvos de ataque (civis ou militares) e quem são os culpados a serem punidos, quando a lista de suspeitos, muitos já enclausurados, vai ficando simplesmente enorme.

Sob o vão pretexto de que devem ser tomadas medidas especiais de precaução para proteger a população inocente, a tecnologia avançada vai sendo empregada com o mais absoluto despudor e ilegitimidade, no afã de captar informações (as mais diversas?) para potencializar o arsenal de inteligência... Pior, o fenômeno tende a descambar para os concubinatos globalizados.

O emprego secreto e indiscriminado de tais práticas, tal qual um verdadeiro ocultismo, vai multiplicando as faces anônimas que se agregam sob as asas da impunidade quase legitimada e gozam do privilégio da impunidade acobertada.

O terreno vai ficando cada vez mais minado para que as mais variadas discriminações que já teriam sido banidas do catálogo dos ítens politicamente corretos, venham a se tornar mercadoria queimada em saldos que ostentam a etiqueta do anti-terrorismo.

Seria esta uma nova versão do Holocausto, quando não mais se persegue uma raça ou religião, mas todos aqueles que representem um perigo ao status quo?

Parece que poderíamos regredir para outros momentos da História da Civilização, se não conseguirmos respeitar nossas leis. Quando o regime político é democrático, independentemente do sistema econômico vigente num país, aquilo que é perigoso ou não, geralmente já está sobejamente definido, bem como as respectivas condenações, de acordo com o crime cometido. O problema está em não se conseguir definir se um indivíduo é criminoso, terrorista, prisioneiro de guerra ou nenhuma das alternativas anteriores. Ainda é permitido ser um livre pensador?

Regimes totalitários têm, geralmente, como uma de suas características fundamentais critérios oportunistas que podem ser escamoteados através de curiosos eufemismos, aparentemente sem contrariar seu referendum por excelência. Em certos casos, o despudor ditatorial manifesta-se sem véus.

O discurso político pode estar eivado de artimanhas. Não é surpreendente flagrar estratégias distorcidas que, com o intuito de neutralizar ou destruir uma zona de perigo, usam praticamente as mesmas táticas do inimigo. Os métodos podem variar e serem até indiscutivelmente mais sofisticados do ponto de vista da tecnologia ou do armamento bélico, mas é necessário analisar se a lógica interna que sustenta esses contra-ataques não está no mesmo nível do oponente a ser enfrentado. Seria lamentável identificar que trata-se apenas de uma mera troca de lugares, com basicamente as mesmas atitudes.

Quando se está na terra dos mandos e desmandos, essas investidas que desprezam a noção de limites bem demarcados, não só da territorialidade alheia, mas também dos direitos legítimos da cidadania, representam o que eu chamaria de 'fragmentação ideológica'. Quando se trata de países com legislação claramente definida e sub-repticiamente burlada por seus líderes, denomino esse esquema de 'perversão ideológica'.

Por que existem países que estão em guerra uns contra os outros por décadas, sem conseguir por um fim aos seus conflitos? Independentemente da extensa relação de motivos que poderiam ser enunciados, a resposta é clara: não foi possível atingir um nível de desenvolvimento estratégico e de articulação das propostas, que se apóie em mecanismos mais eficientes para atingir os fins a que se propuseram.

Não se trata aqui de uma analogia debochada, ainda que assim possa parecer. A observação que passo a fazer baseia-se mais na evidência. Podemos observar crianças que brigam constantemente, pelas razões mais frívolas. Outras brigam e fazem as pazes. Outras nem gostam de brigar, mas aprendem a se defender. Algumas poucas vivem muito harmoniosamente, enfrentando eventuais percalços de percurso.

Seria um erro considerar que os problemas que as crianças enfrentam sejam muito diferentes daqueles dos adultos. Tudo é proporcional ao nível do desenvolvimento mental.

É penoso constatar que principalmente na esfera político-econômica, os processos psíquicos mais frequentemente utilizados guardam muita semelhança com um jardim da infância sem um EGO adequado para coordenar com sabedoria os impulsos e fantasias inerentes a todo ser humano.

E sabedoria não é sinônimo de repressão, negação, supressão, forclusão. É transformação que busca verdadeiramente o bem comum. É a verdadeira inteligência que busca o máximo de satisfação e desenvolvimento possíveis para todos, com o máximo de responsabilidade para arcar com as conseqüências de seus atos.

A sabedoria não desconhece os estados mais primitivos da mente. Apenas cultiva a esperança de uma evolução fértil daquilo que está em status nascendi. E propõe-se continuamente a reconsiderar, com transparência, a necessidade ou não da contenção desse potencial explosivo, através de um diálogo pacifista, ponderando sobre a adequação das providências a serem tomadas.

É óbvio concluir que quanto mais adequadas forem as circunstâncias oferecidas a esse desenvolvimento, menos numerosos serão os focos de desagregação, podendo ser aproveitada a tendência disruptiva dos instintos, a serviço mais da Criatividade do que da Destruição.

Ressalva seja feita a uma suposta criatividade, muitas vezes falseada até de cientificismo, quando se clonam artificialismos e certas manifestações são ensaiadas numa espécie de proveta social. A verdadeira Criatividade precisa da guarida de uma conjuntura adequada.

O século XXI demanda uma profundidade de intenções para cuidar do presente, pois o presente do futuro não pode estar desvinculado das decisões que venhamos a adotar a respeito de quem somos e o mais legítimo que podemos fazer hoje.

 
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