Freud e a Música

 

Diante dos novos horizontes abertos pela psicanálise, surge a possibilidade de se compreender a música segundo uma nova ótica, a lógica do inconsciente.

A Psicanálise lida primordialmente com os afetos, enquanto que a música nos enleva e desperta em nós profundas emoções e se comunica com o reservatório infinito do nosso inconsciente não reprimido, anterior às palavras que já são mais limitadas para poder exprimi-lo.

Contudo, percebemos que essa importante forma de expressão é uma das que menos foi explorada pela psicanálise que se fundamenta na escuta da clínica, através da qual a fala reproduz padrões de tom, timbre, ritmo, intensidade e as pausas do silêncio. Então como não pensar num vínculo entre psicanálise e música? Por que Freud frequentemente falava da sua limitada sensibilidade para a música, afirmando que as palavras lhe eram indispensáveis?

Em O Moisés de Michelangelo (E.S., vol. XIII, 1914), Freud diz:

“Posso dizer de saída que não sou um conhecedor de arte, mas simplesmente um leigo. Tenho observado que o assunto obras de arte tem para mim uma atração mais forte que suas qualidades formais e técnicas, embora para o artista o valor delas esteja, antes de tudo, nestas. Sou incapaz de apreciar corretamente muitos dos métodos utilizados e dos efeitos obtidos em arte. Confesso isto a fim de me assegurar da indulgência do leitor para a tentativa que aqui me propus. Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos freqüência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreende-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve seu efeito.Onde não consigo fazer isso, como por exemplo, com a música sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta.”

James Strachey, em seu prefácio geral no volume I da edição Standard da obra de Freud, comenta sobre ele (1966, p.XVI, nota 1): “Muitas passagens em seus trabalhos dão evidência do seu interesse pelas artes visuais; talvez sua atitude para com a música não fosse tão negativa quanto ele gostava que acreditassem”. (p.109)

Na opinião de Freud o perigo de se envolver com a música era a possibilidade de perder o controle racional que ele havia eleito como seu objetivo. Assim sendo, pelo avesso, Freud confirmou que a música é como no caso dos sonhos, a via régia para o inconsciente.

Apesar disso, Freud tinha certa familiaridade com algumas óperas como Don Giovanni, As Bodas de Fígaro e A Flauta Mágica de Mozart, Carmen de Bizet e Meistersinger de Wagner, das quais guardava os discos em sua casa.

“A atração da ópera sobre alguém tão pouco musical como Freud não é de forma alguma misteriosa. A ópera, afinal, é música com palavras, canção unida à ação dramática. Como a maior parte das leituras de Freud, ela podia lhe proporcionar o agradável impacto do reconhecimento; à sua maneira extravagante e muitas vezes melodramática, a ópera tratava das questões psicológicas que preocuparam Freud durante toda a sua vida adulta: o amor, o ódio, a avidez, a traição. Além disso, a ópera também é um espetáculo, e Freud era particularmente sensível a impressões visuais. Era por isso que ele olhava seus pacientes com a mesma atenção com que os ouvia. E mais, a ópera retrata o desenlace de agitados conflitos morais, desembocando em soluções morais satisfatórias; ela apresenta protagonistas com alta expressão verbal presos na luta entre o bem e o mal. Entre as cinco óperas favoritas de Freud, à exceção de Carmen, todas – e mais obviamente A Flauta Mágica e Meistersinger – decretam o triunfo da virtude sobre o vício, desenlace que proporciona prazer ao ouvinte mais sofisticado, além de oferecer informações sobre as lutas que se travam no espírito de homens e mulheres.” (UMA VIDA PARA O NOSSO TEMPO por Peter Gay – pp. 166-167)

Apesar do distanciamento de Freud, em relação à música, faz parte de sua biografia um raro episódio: durante o verão de 1910, quando Freud estava de férias na Holanda, Gustav Mahler, num estado de profunda depressão, decidiu consultá-lo. O dia 26 de agosto era o último dia em que seria possível encontrar com o psicanalista, que estava se preparando para viajar com Ferenczi para a Sicília. Reuniram-se num restaurante e a sessão analítica durou 4 horas e, ao que tudo indica, tanto Mahler quanto Freud ficaram satisfeitos com a experiência.

Finalizando, alguns psicanalistas atuais, sem medo de se perder no ‘caos’, conseguem fazer a travessia entre a sonoridade das falas na sessão e o cenário musical, propriamente dito. E, apesar da entrega emocional, o ouvinte não tem um papel passivo. O processo é dialético, pois é através da nossa escuta que a obra se completa.

 
 
Atelier de idéias este artigo em inglês Copyright ©2010 by Maria Helena Rowell (27.08.10)